Nas últimas três décadas, a investigação sobre o "apóstolo dos gentios" trouxe novidades. Pequena viagem por obras publicadas em Portugal nos últimos meses
Em três décadas, algumas ideias sobre São Paulo, que Nieztsche considerava o verdadeiro fundador do cristianismo, foram deitadas abaixo. Nos últimos anos, emergiu uma nova figura do "apóstolo dos gentios": alguém que não renegou o judaísmo que professara, de temperamento obsessivo e sujeito a mudanças de humor, promotor da liderança feminina nas comunidades que fundava, opositor da divinização do imperador romano.
A figura de Paulo atrai, além de cristãos, ateus como Alain Badiou, Giorgio Agamben ou Slajov Zizek (os dois primeiros escreveram obras fundamentais da actual bibliografia paulina). Também vários judeus - como Jacob Taubes. E outro ensaísta como George Steiner diz que "Paulo de Tarso é simplesmente um dos maiores escritores da tradição ocidental" e as suas cartas "uma obra-prima de retórica, de alegorias usadas para fins estratégicos, de paradoxos e de um sofrimento corrosivo".
No espaço de poucos meses, algumas obras publicadas em Portugal a pretexto do Ano Paulino - comemoração, até Junho, dos dois mil anos de nascimento de Paulo de Tarso - trouxeram luz sobre a personalidade, a vida, o pensamento e a acção do mais importante missionário do primeiro século cristão.
A biografia escrita por Murphy O'Connor foi uma das boas surpresas traduzidas para português. O'Connor traça um perfil vivo de uma forte personalidade sempre em desassossego, por vezes irascível, que não enjeita a fé judaica. Nascido pouco depois de Jesus, Paulo não chega a conhecer Cristo pessoalmente, mas acaba por ser o principal divulgador da sua mensagem, através das viagens que faz - a última das quais lhe valeu a morte, em Roma, à roda do ano 67. Com Paulo, o cristianismo tornou-se uma religião urbana e cosmopolita, irradiando a sua mensagem a partir das cidades.
Sobre o início e o fim da sua vida sabe-se menos. Na expressão de Pascoaes, são "duas névoas entre as quais medeia um espaço limpo". Durante o qual Paulo escreveu cartas às comunidades que fundara - são 13 textos mas, sabe-se agora, só sete do seu punho; as outras seis não foram escritas por ele ou não há certezas. São esses textos, em grego, a base da redescoberta de Paulo, depois de a sua vida ter sido colada à narrativa do livro dos Actos dos Apóstolos, historicamente menos fiável que as Cartas em vários pormenores.
Nestas revela-se o homem afectivo e terno, que falava do trabalho e da alegria, preocupado com o devir das comunidades que fundara, duro quando precisava de chamar a atenção. Como na primeira Carta aos Tessalonicenses, a primeira por ele escrita (talvez em Corinto, entre 50 e 52) e o primeiro texto do Novo Testamento: "Pedimo-vos, irmãos, que reconheçais aqueles que se afadigam entre vós (...). Sede sempre alegres. Orai sem cessar. Em tudo dai graças. Esta é, de facto, a vontade de Deus a vosso respeito (...) Examinai tudo, guardai o que é bom."
Além de não ter fundado uma religião, Paulo nem sequer considerava ter aderido a uma nova. Para ele, Jesus era a plenitude do judaísmo messiânico: quinze anos depois da sua conversão, observa O'Connor, Paulo acolhia qualquer judeu que também se convertesse e quisesse continuar a praticar a circuncisão ou a comer "kosher". A única condição era acreditar que a sua salvação "dependia completamente da fé em Jesus".
Esta perspectiva foi aberta pela primeira vez em 1977 por Ed Parish Sanders, numa obra que em três décadas se tornou clássica, marcando um antes e um depois nos estudos sobre Paulo. Este "está de acordo com o judaísmo palestino", afirma Sanders, depois de cotejar o pensamento expresso nas Cartas com a literatura judaica contemporânea - incluindo os Manuscritos do Mar Morto e vários apócrifos bíblicos.
Sanders sintetiza a relação de Paulo com o judaísmo dizendo que há pontos de acordo "substanciais" e uma diferença de fundo: a do modelo de religião. "A ideia fundamental é que o crente torna-se um com Jesus Cristo." O'Connor acrescenta que Paulo condenava a compreensão "radicalmente distorcida da Lei [judaica] e não a Lei em si própria".
Sobre o papel das mulheres o investigador da Escola Bíblica de Jerusalém não tem dúvidas: elas tinham um estatuto igual ao dos homens. Em Filipos, por exemplo, "é sem surpresa que vemos Evódia e Sínteque tornarem-se chefes de Igrejas domésticas". Valmor da Silva desenvolve o tema e Carlos Mesters enuncia os nomes de várias líderes referidas nas Cartas: Priscila, Ápia, Lídia, Ninfa, Júlia, Olimpas.
A Didaskalia, revista da Faculdade de Teologia, inclui um conjunto de olhares recentes - e originais - sobre Paulo (onde se destaca uma visão crítica sobre o São Paulo "gnóstico-saudosista" de Pascoaes). No texto sobre os espaços das assembleias dos primeiros cristãos, Carlos Gil Arbiol propõe que o facto de haver mulheres que oram e profetizam, "e que o façam transgredindo as fronteiras naturais da identidade sexual, altera a hierarquia natural e o equilíbrio da ordem doméstica e política".
Mais: esses lugares mostram que Paulo "concebeu e construiu as suas comunidades dando-lhes uma inconfundível dimensão pública (com funções políticas)". Uma perspectiva aprofundada pelo judeu Taubes e por Horsley, que fala mesmo do evangelho "contra-imperial de Paulo".
Nas Cartas, grandes temas são o debate entre a fé e as obras, que levou à ruptura entre católicos e protestantes. Hoje, investigadores e igrejas consideram que a polémica do século XVI está ultrapassada - também porque o ensinamento de Paulo foi visto por Lutero "como reacção contra o judaísmo e oposição a ele", como explica Dunn. A salvação que vem por Jesus para redimir a humanidade do fracasso, a mudança da consciência através da acção do evangelho e do Espírito Santo, a fé como experiência de amor e como esperança na vinda messiânica - são outros temas fortes das Cartas.
Agamben escreveu um comentário à Carta aos Romanos onde fala dessa dimensão messiânica: o tempo presente situa-se entre a ressurreição de Jesus e o tempo escatológico. "O que interessa o apóstolo não é o último dia, não é o instante em que o tempo acaba, mas o tempo que se contrai e começa a acabar - o tempo que resta entre o tempo e o seu fim." E Badiou, que assume o seu ateísmo, diz que Paulo é o fundador do universalismo que "reduz o cristianismo a um só enunciado: Jesus ressuscitou".
"O diálogo de Paulo com as suas comunidades", escreve Becker, "mostra um apóstolo imaginativo, de grande versatilidade conceptual, que afronta os desafios e sabe evoluir."
Na segunda Carta a Timóteo, Paulo escreve: "Combati o bom combate, terminei a corrida, permaneci fiel. A partir de agora, já me aguarda a merecida coroa, que em entregará, naquele dia, o Senhor, justo juiz, e não somente a mim, mas a todos os que anseiam pela sua vinda."
Retirado de: http://ipsilon.publico.pt/livros/texto.aspx?id=221618