sexta-feira, 29 de maio de 2009

Paulo e o desporto


A utilização de "vocabulário desportivo" nas cartas paulinas (nomeadamente em Fl 2,16; Fl 3,12-14; 1Cor 9,24-27 ; Gl 2,2; 1Tm 4,8 e 2Tm 4,6-8) evoca o desporto tal como era praticado e encarado na cultura helénica: com uma importante vertente religiosa. De facto, em nenhuma outra cultura conhecida, se atingiu um tal nível de desenvolvimento harmonioso do corpo humano, integrando o desporto na παιδεία do cidadão, e ligando-o intimamente à arte, à poesia, à cultura e à religião.

Já nos Poemas Homéricos, testemunhos de uma época muito anterior, encontramos o gérmen desta concepção, num passo da Odisseia em que Laodamante, filho do rei Antínoo, diz a Ulisses: «na vida não há maior glória para o homem do que os feitos alcançados pelos pés e pelos braços».

Na Antiguidade Clássica os maiores e mais importantes eventos desportivos eram os jogos olímpicos, píticos, nemeus e ístmicos, e para os competidores destes eventos, o objectivo era não só alcançar a glória, mas também atingir algo mais completo e abrangente, a καλοκαγαθία, palavra que traduz uma noção de excelência quer moral quer física.


O grande poeta lírico Píndaro (sécs. VI-V a.C.) deixou como legado à humanidade as suas evpinίκια, odes destinadas a serem cantadas aos vencedores destes grandes jogos. Mas não são simples hinos desportivos, ligados a comemorações vitoriosas tal como as entendemos na nossa época. Píndaro, diz-nos A. Caeiro, vê nestas disputas pela vitória um recurso hermenêutico para a compreensão da situação existencial do ser humano em agonia – de αγών,, que tanto pode significar disputa, luta, como provação ou perigo. «Ficar entre os primeiros é encontrar um lugar para ser. É perceber que se pode ter vivido sem ter existido. Sem ter sido». Daqui se infere a enorme densidade filosófica – e necessariamente também teológica – que o desporto tinha na Antiguidade. Escreve Aristóteles: «é dado adquirido que a educação moral deve preceder a educação intelectual, e que é necessário exercitar o corpo antes de exercitar o espírito».


Durante o período de tempo em que foram disputadas estas competições – desde o século VI a.C. até ao século IV da nossa era – a honra que um atleta atingia quando vencia em todos os grandes Jogos merecia-lhe o título de Περιοδονίκες, ou seja, vencedor total. Conta Cícero que, após Diágoras de Rodes ter visto dois filhos seus a sucederem-lhe na obtenção desta máxima honra, um certo espartano exclamou: «Morre, Diágoras, não podes subir aos céus». Serve isto para ilustrar o lugar fundamental do desporto enquanto admiração pela superioridade física que caracteriza o mundo helénico. Daí que não seja de espantar que Paulo, nas passagens referidas acima, utilize metáforas que remetem para o mundo do desporto, evocando ginástica, corridas e lutas, de modo a comunicar o Evangelho da salvação numa linguagem nova e não directamente religiosa. Talvez uma lição para os dias de hoje?

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Carta a Filémon por Luís Miguel Cintra

COMPANHEIROS DE PAULO

Nas Cartas de proto paulinas aparecem 50 nomes de pessoas, 48 delas Paulo diz o nome e 2 não conhecemos o nome (mãe de Rufo Rom 16,13; irmã de Nereu Rom 16,15).
A Carta aos Romanos é a Carta por exelência pois é onde aparece mais nomes: 26 nomes de pessoas, 3 Igrejas domésticas(casa de Priscila e Áquila16,5; de Aristóbulo 16,10; e de Narciso 16,11) e dois grupos de escravos (16,12.16,14).
As restantes Cartas de Paulo (Gl, 1Ts, 1 e 2Cor, Fl e Flm) aparecem 24 nomes, todos indentificados e 2 Igrejas domésticas (1Cor 1,11 Casa de Cloé; Fl 4,22 Casa de César).
Nomes que aparecem na Carta aos Romanos:
Febe, Priscila, Áquila, Epéneto, Maria, Andrónico, Júnia, Ampliato, Urbano, Estáquio, Apeles, Herodião, Trifena, Trifosa, Pérside, Rufo, mãe de Rufo, Assíncrito, Flegonte, Hermes, Pátrobas, Hermas, Filólogo, Júlia, Nereu, e sua irmã, Olímpio, Timóteo, Lúcio, Jasão, Sosípatro, Tércio, Gaio, Erasto e Quarto.
Nomes que aparecem nas Cartas: 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonissences e Filémon
1Cor: Sóstenes, Gaio, Estéfanes, Apolo, Barnabé, Timóteo, Fortunato e Arcaio.
2Cor: Silvano e Tito.
Gálatas: (não aparece nenhum)
Filipenses: Epafrodito, Evódia, Síntique e Sízigo.
1 Tessalonissences: Silvano e Timóteo (nomes já acima referidos)
Filémon: Filémon, Ápia, Arquipo, Onésimo, Epafras, Marcos, Aristarco, Demas e Lucas.


O termo vísceras (splanchna) nos autores judaicos:

Filón de Alexandria e Flávio Josefo
[1]

São Paulo por várias vezes usa o termo splanchna nas suas cartas. Interessou-nos saber como era este termo usado pelos escritores judaicos contemporâneos de Paulo.

Para Filón de Alexandria, o termo splanchna tem um significado puramente anatómico, afirmando que «o lobo do fígado, a mais nobre das vísceras, é a primícia do sacrifício». As splanchna são contadas entre os meios ilícitos de adivinhação do futuro.

Se estômago, coração, pulmões, baço, fígado, rins são contados entre as splanchna, estas distinguem-se das restantes partes do corpo, como a testa, o ventre, etc. As splanchna são a parte interna do corpo, que podem simbolizar a dimensão da virtude, na qual só a razão pode penetrar.

Outro uso mais metafórico é quando um certo Jacob se lamenta pela alegada morte de seu filho: «Tornaste-te um lauto banquete para as bestas carnívoras que devoraram as minhas vísceras», ou seja, aquilo que lhe era mais caro e precioso, o seu próprio filho (Jos 25).

Quanto a Flávio Josefo, ele utiliza o termo splanchna quando se refere à morte de Aristóbulo, descrito na Guerra dos Judeus, em que o autor faz a seguinte descrição cruenta: «as vísceras não se dividiam com a dor incessante» (Guerra dos Judeus, 1,81.84). Noutro contexto, fala também de uma flagelação que metera a descoberto as vísceras de todos (Guerra dos Judeus, 2,612).

De referir que este uso ao mesmo tempo realístico e cruento relembra a descrição da morte de Judas em Actos 1,18: «Precipitou-se de cabeça para baixo, rebentou pelo meio, e todas as suas entranhas se espalharam».

Finalmente, na descrição de Flávio Josefo acerca da guerra civil, o termo splanchna assume um valor figurado, mas não propriamente metafórico: trata-se do interior orgânico da nação que é destruído (Guerra dos Judeus, 6,263).



[1] Cf. KOSTER, H., Splanchna, in KITTEL, G., Grande Lessico del Nuovo Testamento, Paideia, Brescia 1979, XII, 917-918.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Dez imagens da Cristologia Paulina

I. A justiça de Deus se realiza mediante a fé em Jesus Cristo – Rm 3,21-31
Rm 3,21 – 21Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; 22justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos e sobre todos os que crêem; porque não há distinção,

II. Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores – Rm 5,1-11
Rm 5,8 – 8Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores.

III. Cristo o novo Adão – Rm 5,12-21
Rm 5,17 – 17Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo.

IV. Morremos com Cristo e viveremos com ele – Rm 6,1-11
Rm 6, 8 – 17Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo.

V. A pregação da cruz como força de Deus – 1Cor 1,18-31
1Cor 1,23-25 – 22Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos buscam sabedoria; 23mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; 24mas para que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. 25Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.


VI. JESUS CRISTO, o único alicerce – (1Cor 3,10-23)
1Cor 3,11 – 11Porque ninguém pode lançar outro fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo.

VII. Os membros do corpo que formam um só conjunto - (1Cor 12,1-13,13)
1Cor 12,12-13 – 12Porque, assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo.
13Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito.

VIII - O glorioso ministério do Espírito – o tesouro - (2Cor 3,4-5,21)
2Cor 4,7 – 7Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós.

IX – O Deus despojado (Kenosis) – (Fl 2,1-30)
Fl 2,7 – 7antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, 8 a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte e morte de cruz.

X – Ele é a cabeça do corpo, que é a Igreja – (Cl 1,9-2,23)
Cl 1,18 – 18Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em todas as coisas ter a primazia, 19porque aprouve a Deus que, nele, residisse toda a plenitude.

Paulo e a participação de todos na evangelização

sintese de um artigo de Wilson Augusto Costa Cabral, sdn
Mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma
Encontrado em www. cnbb.org.br

Uma última lição que podemos tirar da vida de Paulo é o modo como ele se dedicava à formação de comunidade e o modo como ele conquistava novos colaboradores e colaboradoras para a obra da evangelização.
Paulo era inquieto no anúncio do Evangelho. Ele percorria as cidades de seu tempo e lá fundava novas comunidades com lideranças locais. Permanecia algum tempo, organizava e estruturava a comunidade e depois partia. Depois ele não a abandonava, mas fazia contacto, escrevia, orientava. Desse modo ele se fazia presente na vida e na missão dos outros cristãos de seu tempo.
Outro factor interessante é que Paulo sabia formar e contar com colaboradores. O número deles, se observarmos o livro dos Actos dos Apóstolos e as Cartas, passa de oitenta. Em Corinto, no começo dos trabalhos, ele conta com o casal, Áquila e Priscila (cf. At 18,2), em Filipos ele conta com o auxílio das mulheres que já se reuniam para a oração (cf. At 16,13-15). A sua missão aparece como uma missão que é da Igreja e que por isso tem sempre de envolver mais pessoas na obra que é eclesial e em última instância, do próprio Deus.
Dentro desse aspecto comunitário da missão é interessante a forma como Paulo manteve-se sempre unido a Pedro, aos outros apóstolos, e às demais comunidades. O sentido de pertença e ao mesmo tempo a sua fidelidade impressionam a qualquer um que tenha contacto com sua vida.

terça-feira, 26 de maio de 2009

“Quando eu for para Espanha”

1 – No coração de Roma, onde palpitava toda a vida do Império, Lucas deixa-nos Paulo a anunciar livremente o Evangelho de Jesus Cristo. «Recebia todos os que o procuravam, pregando o Reino de Deus. Com toda a coragem e sem obstáculos, ensinava as coisas que se referiam ao Senhor Jesus Cristo» (Act. 28, 30-31). Lucas quis terminar o seu livro num contexto de liberdade e glória para o Apóstolo dos Gentios. Entretanto surgem-nos algumas perguntas: Foi julgado no tribunal de César e declarado inocente? Os judeus da Palestina vieram a Roma acusá-lo? Da sua morte, que a tradição apresenta como mártir, Lucas deixa-nos na incerteza.As duas cartas a Timóteo e uma a Tito mostram-nos o apóstolo novamente preso em Roma e esquecido pelos amigos, «somente Lucas está comigo» (2 Tim. 4,11).E o desejo veemente de Paulo de chegar até à Espanha, como escrevera na carta aos Romanos, «quando eu for para a Espanha espero ver-vos por ocasião da minha passagem. Espero receber também a vossa ajuda para ir até lá…» (Rom. 15, 24)?Paulo foi libertado cerca do ano 62, se a sua morte ocorreu no ano 67 ou 68 d. C. sob o imperador Nero, que, segundo Tácito, nos seus Anais, «produziu bodes expiatórios, com todo o refinamento, os notoriamente depravados cristãos, como eram popularmente chamados», o apóstolo teve ainda cinco a seis anos durante os quais não deixou de anunciar o Senhor Jesus Cristo. Eusébio, o exímio historiador das origens do cristianismo, escreveu na sua História Eclesiástica (2. 25): «está registado que Paulo foi decapitado em Roma, no reinado de Nero».«Atingiu o extremo do ocidente»

2 - Paulo tinha um temperamento de fogo que exigia acção imediata, a sua opção por chegar até ao fim do ocidente para evangelizar, como teve tempo após ser libertado em Roma, não agiu contra si mesmo. Acreditamos, portanto, que veio até à península ibérica por via marítima, viagem aliás fácil, num dos barcos que saía do porto de Óstia e, após uma semana, chegou às costas da Catalunha. Quanto ao lugar e forma de evangelização, nem o apóstolo nem Lucas, o redactor dos Actos dos Apóstolos, nada deixaram escrito, mas Clemente de Roma, escrevendo aos Coríntios, falando dos últimos anos do apóstolo escreveu: Paulo «foi um arauto do (evangelho) não somente no oriente, mas também no ocidente… tendo ensinado a justiça em todo o mundo ele atingiu o extremo do ocidente, e deu o testemunho diante do governo».Roma não é o extremo do ocidente, este testemunho de Clemente compreende-se, se, após Roma, Paulo veio até à península ibérica cuja viagem estava programada desde há vários anos. Se o apóstolo sofreu um segundo cativeiro romano, como escreveu Clemente, que não foi uma residência forçada como na primeira chegada a Roma, mas uma prisão provocada por denúncias, sendo «vítima dos ciúmes e da discórdia, Paulo mostra-nos o preço que estava reservado à sua paciência».Neste texto, São Clemente alude não só à pregação de Paulo no extremo ocidente, mas também a um segundo cativeiro romano, provavelmente vítima de acusações dos judeus. O apóstolo foi preso «com cadeias, como se fosse um malfeitor», escreveu a Timóteo (2 Tim. 2, 9).«Lembrado das tuas lágrimas»

3 – Segundo as cartas pastorais a Timóteo e Tito, Paulo voltou novamente, após a viagem a Espanha, ao oriente para preparar a sucessão nas igrejas que ele tinha estabelecido, tanto em Éfeso, onde colocou Timóteo, como na ilha de Chipre, confiada a Tito. Talvez que tivesse visitado as comunidades que tanto amara e onde era amado, Filipos e Tessalónica, que «irradiavam a palavra do Senhor» (1 Tess 1, 8).Do porto de Neápolis, a actual Kavala, tomou a nave para Tróade, onde talvez por causa do calor, deixou o manto em casa de Carpo, com os livros e os pergaminhos (2 Tim. 4, 13) que continham as Escrituras hebraicas, talvez palavras de Jesus e cópias das cartas que escrevera às comunidades e as que tinha recebido delas.É provável que, antes de chegar a Éfeso, tivesse visitado as grandes cidades romanas de Pérgamo e Esmirna, comunidades que não tinham sido criadas por ele, mas pelos seus missionários provenientes de Éfeso. Nesta cidade encontrou o amigo e companheiro de tantas viagens apostólicas, Timóteo, que não tinha uma personalidade forte e decidida para enfrentar um cargo tão oneroso numa cidade tão difícil de controlar as exigências e ideias da comunidade cristã, num meio pagão. Na carta que lhe enviou, Paulo escreveu: «sem cessar, noite e dia, faço memória de ti nas minhas orações, desejando ver-te, lembrado das tuas lágrimas, para me encher de alegria, trazendo à memória aquela fé tão sincera que há em ti…» (2 Tim. 1, 3).Paulo, em Éfeso, tinha a seu lado vários companheiros de apostolado, Tito, Lucas, Dimas, Tíquico que, de Roma, levara as cartas aos Colossenses e Efésios, Trófimo que o acompanhara a Jerusalém na última viagem e fora, inconscientemente, causa da sua prisão no Templo. Foi na província da Ásia que Paulo teve conhecimento da situação catastrófica que se abatera sobre os cristãos de Roma. O imperador Nero, que no princípio do seu reinado se mostrara moderado, enlouqueceu após o incêndio de Roma, no ano 64 d. C. Nero tomou medidas drásticas para calar os que lhe atribuíam a causa do incêndio da cidade. A culpa era dos cristãos. A notícia correu veloz por todo o Império e chegou às igrejas paulinas da Ásia, da Macedónia e da Acaia. Paulo decidiu voltar a Roma e enviou à frente Tíquico para informar a comunidade da sua decisão e planos. Não sabemos o que aconteceu para ser preso, mas quando se quer destruir uma comunidade, começa-se por aprisionar os chefes, neste caso, Pedro e Paulo.

D. Teodoro, Bispo Emérito do Funchal


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