quarta-feira, 6 de maio de 2009

A justificação pela fé e a liberdade cristã

Elaborado a partir de seguinte Bibliografia:
Giorgio Girardet, La Letteran di Paolo ai Galati, Claudiana Editrice, Torino, 1982.
E. Cothenet, A Epistola aos Galatas, Edições Paulinas, São Paulo, 1985.
Josef Holzner, Paulo de Tarso, Quadrante, São Paulo, 1994.

1) A justificação pela fé – passagem da escravidão á liberdade

Um elemento inteiramente novo do cristianismo é a gratuidade da graça e da redenção caracterizada pela justificação pela fé. Este é um dos elementos centrais do Evangelho de Paulo. É uma certeza que brota da sua própria experiência pessoal. A experiência da gratuidade de Deus que fez a caminho de Damasco.
Esta justificação pela fé é o início de uma vida nova na liberdade do Espírito de Deus; é a regeneração do homem, a realização da redenção caracterizada pela passagem do estado de pecado para o estado da graça. Tudo isto é obra de Deus e consequência da morte de Cristo, sem qualquer contribuição pessoal por parte do homem. A justificação e a salvação é obra do Cristo crucificado e ressuscitado. “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós; porque está escrito: ‘maldito todo aquele que for pendurado no madeiro’, para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios por Jesus Cristo, e para que pela fé nós recebamos a promessa do Espírito” (Gl 3, 10-14).
A verdadeira novidade de Jesus Cristo é esta. Pela sua morte na cruz Ele anula a maldição e a transforma em bênção. Assim, o justo é o homem que Deus declarou justo, independentemente do cumprimento de Lei. Pois, nenhum acto humano pode tornar-se causa ou condição de salvação, com excepção do acto de fé gerado pelo amor através do Espírito Santo. Esta fé que justifica, e da qual a vida brota como de uma raiz, não é obra essencialmente humana, mas é obra de Deus, uma dádiva gratuita do Espírito Santo.
O impulso que conduz à fé procede primeiramente de Deus, pois, como diz Paulo “de nada valem o querer e o correr do homem mas somente a misericórdia de Deus” (cf. Rm 9,16).
O homem, assim, é justificado não por um acto meramente humano de fé (confiança) em Deus, mas pela graça de Cristo mediante a Sua morte e ressurreição. Não se trata de uma fé meramente humana mas de uma fé potenciada pela graça de Cristo e do Espírito Santotrata-se “da fé que opera pelo amor” (Gl 5, 6).
Nesta carta aos gálatas, o apóstolo apresenta também a oposição entre a justificação pela fé em Cristo e a justificação pelas obras. Paulo diz que a observância da Lei é simplesmente impossível, e que a justificação se dá pela fé, como obra exclusiva da graça de Deus. Também Pedro havia declarado no Concilio de Jerusalém que a Lei era “um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportar” (At 15, 10). Estabelece-se, assim, uma oposição entre a justiça da Lei e a justiça pelas obras, entre a fé e a Lei. A lei é inferior à fé, pois, não salva ninguém, antes é causa de maldição, porque indica ao homem o caminho perfeito que é impossível de ser alcançado, advogando contra o homem a sua incapacidade. Quem salva é Jesus Cristo e a obra de libertação que Ele realizou gratuitamente. O próprio apóstolo testemunha: “O homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo. De facto, temos também crido em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da lei; porquanto pelas obras da lei nenhuma carne será justificada” (Gl 2, 16). Aqui, passa-se de um quadro jurídico da justificação para ingressar no domínio do amor gratuito de Deus. Saímos da justiça distributiva (própria da Lei) para entrar na lógica da justiça do amor oblativo. Como João, Paulo descobre o mistério do amor sobre a cruz de Cristo. De objecto de horror e de sinal de maldição, ei-la transformada em revelação de amor. Pela cruz, morte e ressurreição, eis que entramos no novo tempo da gratuidade da graça. Entramos na plenitude dos tempos, onde as palavras de ordem serão: fé, graça, Cristo e Espírito Santo.
Paulo teve o mérito de descobrir que a morte de Cristo na cruz significava o fim do regime da Lei. Conforme as expressão grega “dikaiwqw/men evk pi,stewj Cristou” (Gl 2, 16) e “dikaiwqh/nai evn Cristw”/ (Gl 2, 17) nós percebemos que a justificação se dá a partir de (evk) a fé, mas em (en) Cristo. Para Paulo a fé é um viver em Cristo: “já não sou eu que vivo mas é Cristo que vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2, 20).
O acto pelo qual somos justificados não é uma simples sentença de absolvição, mas uma “nova criação” (Gl 6, 15) em (en) Cristo. A intervenção de Deus, à qual a fé dá acesso, consiste, portanto, num novo plasmar espiritual do homem pelo Espírito Santo, que o configura com Cristo e torna-lhe possível uma vida autenticamente filial. Segundo o apóstolo, a justificação pela graça de Cristo introduz o homem numa vida espiritual de filiação divina em Cristo, mediante o Espírito Santo: “Vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adopção de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai” (Gl 4, 4-6). Graças ao Espírito o homem adquire uma vida de autêntico de filho de Deus.
Para Paulo, a justificação é apenas a primeira etapa no caminho da santidade, uma etapa transitória no processo espiritual, depois do qual se estende a imensa e cálida paisagem da vida em Cristo, sob a suave moção do Espírito Santo. A justificação não é mais do que um começo da vida cristã. A partir daqui a “nova criatura” deverá velar pela sua união com Cristo; já não tem o direito de se deixar conduzir pelos instintos da carne, mas deve obedecer aos impulsos do Espírito Santo. A justificação é apenas uma etapa transitória no processo espiritual que dá início à vida em Cristo, como o Paulo testemunha na sua própria vida: “já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim; e a vida que eu agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2, 20). Pela fé, como acto de adesão voluntária a Cristo, o apóstolo participa da vida e dos méritos de Cristo.

2) A liberdade cristã: vida segundo o Espírito

Depois de ter exposto a tese da justiça pela fé, Paulo tira as consequências: o que os gálatas têm a fazer é corresponder à sua vocação de liberdade, aquela que o Espírito suscita nos filhos de Deus. “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não useis então da liberdade para dar ocasião à carne, mas servi-vos uns aos outros pelo amor (dia. th/j avga,phj douleu,ete avllh,loij)” (Gl 5, 13). Esta liberdade consiste, precisamente, no serviço por amor (dia. th/j avga,phj). O ‘avga,ph’ é apresentado em sua dimensão de amor-doacção ao próximo.
Olhando em retrospectiva, observamos aqui que tanto o desenrolar da vida cristã como o início da mesma, através da justificação pela fé, só são possíveis a partir do amor: “Pi,stij diV avga,phj evnergoume,nh” (Gl 5, 6). É interessante observar como a fé em Paulo não aparece separada do amor, mas como um elemento vital do mesmo amor. A fé que opera a justificação é já uma fé potenciada pelo amor de Deus. Isto significa que uma adesão de fé que não comporta-se um mínimo de amor nas pegadas de Cristo, como disponibilidade para o serviço aos outros, não seria a fé no sentido paulino do termo.
O elemento central da vida cristã, desde o inicio até ao fim, é, portanto, o ‘avga,ph’. E, assim, o Espírito Santo, a dádiva de Deus que torna possível o amor, aparece tanto como a origem da fé como do amor. Ele é Aquele que permite o acto de fé, através do ‘avga,ph’, e Aquele que garante o desabrochar do mesmo ‘avga,ph’. O espírito santo, fonte do ‘avga,ph’ (Rm 5, 5) é o Espírito de adopção que nos leva a clamar “Abba! Pai” (Gl 4, 6). O espírito é o impulso filial impresso na vida inteira do crente. Vida filial caracterizada, essencialmente, pela liberdade, pois, o filho não é mais escravo. Como diz o apostolo, “vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adopção de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai. Assim que já não és mais servo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro de Deus por Cristo” (Gl 4, 4-7). Porém, não se trata de uma liberdade barata, mas de uma liberdade soberanamente exigente, porque é caminho de amor-doação - ‘avga,ph’-, onde não existem limites para o serviço. É uma liberdade que só desabrocha como serviço mútuo, no clima do ‘avga,ph’. Esta via do ‘avga,ph’ é a via da liberdade porque “onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2 Cor 3, 17). Como diz o apóstolo, esta liberdade não é para fazer aquilo que apetece, segundo o instinto (que é expresso pela palavra ‘sarx’), porque “se vivemos em Espírito, andemos também em Espírito” (Gl 5, 25) “e o fruto do Espírito é: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança” (Gl 5, 22).
É interessante notar a diferença de linguagem entre “as obras (no plural) da Lei” e “o fruto (no singular) do espírito” (“o` de. karpo.j tou/ pneu,mato,j…”). Isto porque, mais do que obras, aqui se trata de um estilo de vida, a vida no Espírito, caracterizada pelo ‘avga,ph’. Este ‘avga,ph’ assume e mete em prática toda a Lei. A Lei, ao final de contas não é abolida, mas superada, porque é reassumida totalmente no novo mandamento: o do serviço aos demais a exemplo de Cristo – o ‘avga,ph’. Ao critério da Lei, já superado, é substituído um outro critério: o ‘avga,ph’. Assim, a Lei entra no âmbito da liberdade e é totalmente recuperada através do ‘avga,ph’. Este novo estilo de vida vem descrito pelo apostolo, na carta aos Filipenses, da seguinte forma: “Que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz” (Fl 2, 5-8).
Paulo adopta este termo especifico do ‘avga,ph’, que é quase desconhecido na linguagem literária do seu tempo, com o qual a nova concepção de vida em Cristo ressuscitado se identifica. ‘Aga,ph’ é o amor que se dá, é a relação inter-humana entendida como um dom. É um movimento que começando em Deus, no Cristo que assumiu a condição de servo, cria nos homens um movimento horizontal semelhante. Como Cristo que se deu a si mesmo a favor do homem, assim, o homem é chamado a dar-se aos outros em atitude de serviço.
Toda esta descrição que o apóstolo faz da ‘vida nova’ é apresentada através do binómio linguístico: carne (sa.rx) e espírito (pneu/ma): “Andai em Espírito, e não cumprireis a concupiscência da carne. Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro” (Gl 5, 16-17). “Porque o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” (Rm 14, 17).

Um comentário:

  1. Epa, grande texto...confesso que não o consegui ler todo :) Mas sugiro que a próxima transliteres o texto em grego porque estes blogues têm um suporte de "fonts" muito limitado.

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